Flutuando no estado de emergência - Andrà tutto bene

Estar justo aqui, na Itália, bem no centro da emergência mundial que o mundo esta vivendo, tem sido uma experiencia e tanto na minha vida. As vezes eu simplesmente ignoro o fato de estar aqui, vivo minha vida, trabalho, cozinho, não penso muito no mundo la fora. Mas as vezes, quando resolvo perceber o que é isso de verdade, no que nos transformou essa crise, vejo que já perdemos a cabeça.

E digo isso no sentido de que os níveis saudáveis já se acabaram. As sirenes volta e meia tocam na rua para relembrar onde estamos e em que momento estamos, a praça aqui em frente, é quase deserta. No começo a quarentena deveria durar umas duas semanas, a crise não deveria se espalhar tanto,  a possibilidade de contrair o vírus ainda era distante, não acreditávamos de verdade que ele chegaria ate nós... Na terceira semana as coisas começaram a ficar mais estranhas, o home office deixou de ser um curto período de tranquilidade e passou a ser nossa prisão individual. As possibilidades de ir para o centro, ou ir para a montanha, se acabaram, do nada a movimentação se tornou explicitamente proibida. Assinar autodeclaração para ir ao mercado? Que absurdo! pensei... Não posso viver assim, este é um país ditatorial, pensei.... Aos poucos o que eu via só como repressão, passou a me amedrontar também. A dorzinha de garganta que não passa, será que não é? Agora, já na quinta, ou sexta semana de quarentena.. já nem sei mais, fui pega, se não pelo vírus, fui pela pela melancolia e insanidade de estar aqui enclausurada há tanto tempo e tendo que resistir sozinha. Não tem como evitar e fugir da paranoia, da ansiedade, do medo, da desconfiança, não tem! Esta impregnado em todos, se é que o vírus também não está...

Quando bate o desespero, faço a faxina completa na casa, limpo o celular, troco de roupas para sair e entrar em casa, limpo os sapatos. Mas quando se começa a pensar em cada mínimo detalhe concluímos que é  impossível se blindar totalmente. Somente na última semana decidi me fechar totalmente no apartamento, desci poucas vezes somente para tirar o lixo e lavar roupa, no mercado não fui mais, passei a aceitar as refeições trazidas pela universidade. E mesmo meus poucos amigos de residência que ainda via, agora não tenho visto mais. O auge para mim e para meus colegas foi um caso no edifício, e para piorar, no meu andar. A pessoa tosse muito e bem forte, e eu acompanhando o seu sofrimento todas as noites, coisa que tem me impedido de dormir já fazem algumas noites. O que mais impacta é: uma pessoa jovem, que está sofrendo, e que está há poucos metros de você, o ar pode estar contaminado, é difícil fugir. Se o vírus não mata jovens, bem na verdade isso ainda não é tão confirmado assim, e mesmo que a taxa seja baixa, ninguém quer ter uma infecção respiratória com febre de um vírus ainda desconhecido para a ciência e sem uma cura certeira.


A solidão foi chegando assim: no começo perdi os italianos que voltaram para casa, depois perdi vários estrangeiros que largaram tudo e voltaram a seus países, agora estou perdendo também os vizinhos, cada um enclausurado em seu quarto, e chegamos ao nível de trocar itens deixando do lado de fora da porta, sem contato... O início da mudança psicológica para mim foi há dois fins de semana atrás, após nossa última reunião entre amigos. Nesse dia nos reunimos, comemos e bebemos, mas como já tem sido comum, falamos muito do Corona Vírus e suas mazelas. Mas dessa vez não teve o tom de revolta que sempre teve, mas o tom do medo. Falamos sobre família, morte, funeral, enfim, um papo bem sombrio mesmo. E se eu não tinha me dado conta ainda, dessa vez me toquei de que os números ainda estavam só crescendo, de que os mortos eram muitos e de que a perspectiva de melhora ainda não existia.
O auge para mim foi acompanhado da "confirmação científica" ao ler um artigo na Science com uma estatística de que 86% da transmissão se dá por indivíduos assintomáticos ou com sintomas leves, que ainda não foram e que talvez nem serão detectados (https://science.sciencemag.org/content/early/2020/03/24/science.abb3221). O mesmo artigo conclui que a as medidas de retenção drástica (quarentena como foi na China e tem sido aqui na Itália) podem não impedir que o vírus passe a circular na humanidade, mas são a única maneira de conter o contágio indiscriminado, pois isola até os indivíduos assintomáticos, dando tempo aos sistemas de saúde para lidar com mais pacientes e consequentemente impedir tantas mortes.
Se o tempo de manifestação do vírus é pode chegar a 15 dias, então imagine quanta transmissão não se dá nesse tempo. Quanta transmissão não se deu nos eventos públicos que não foram cancelados, nos bares que não foram fechados, e que ainda se dá nos mercados por exemplo. Pior ainda é ler e saber de relatos diretos de pessoas que trabalham com isso, muita tristeza, muito desespero, e contágio entre as pessoas que estão ali trabalhando, uma epidemia no seu mais genuíno senso.

O resultado é que na hora de dormir, a cabeça não para de maquinar cenários apocalípticos, a tragédia chegando até nós, e a falta de visibilidade de um retorno à normalidade. Um dos piores "sintomas" é ir dormir e não ter nada na cabeça além dessa sombra. Não vou ir para a montanha X no fim de semana, não vou escalar a via Y, não vou ao evento Z, não vou viajar, não vou começar um novo hábito, nem comprar uma bicicleta, nem ir num museu, nem conhecer alguém novo, nem visitar algum amigo. É como uma depressão coletiva, o tema mais temido da humanidade nos esta rondando, a morte.
E sim, nos esta rondando de fato... Em um momento dizem "são somente os idosos" (que podem ser nossos avos). Em outro momento nos dizem "são somente pessoas acima de 50 anos)" que podem ser nossos pais. E finalmente começam a dizer "esta semana morreu um de 26".... Eu sinceramente já estava esperando por isso... Sabemos que organismos como vírus e bactérias mudam rapidamente e já estão começando a falar nisso (e.g. Espanha https://www.bbc.com/mundo/noticias-52028901).


Tenho sofrido de insônia nos últimos 4 meses, quase desde que cheguei aqui na Itália. Vim para fazer um doutorado que tem mexido muito com meu lado emocional, cobranças dos mais diversos lados, cobranças pessoais, ansiedades de todas cores devido aos novos ares, sociedade, trabalho, cultura, língua... Em algum momento alguns fantasmas deveriam se afastar, e eu deveria romper as barreiras dos novos desafios... Porém, quando talvez as coisas estivessem começando a entrar no seu lugar, chega o Corona vírus.... Como já narrei anteriormente, e já repeti, eu não acreditei que isso fosse me derrubar. Lutei ate o ultimo momento para não perder minha viagem de campo à Patagônia, me deprimi quando foi cancelado e tive que engolir muito sapo. Mas tudo bem, vamos adiar tudo para o fim do ano, mas "acho que em maio já estaremos de volta". Agora, maio?? Já não temos previsão nenhuma. A verdade é que ninguém sabe o quanto isso ainda pode se multiplicar, a maneira como vai avançar, até que ponto vai chegar. As simulações são feitas, mas na prática é diferente. O vírus chega na América, no Brasil, no seu edifício, no seu andar...
Queria dizer que minha insônia não parou, ela continua no mínimo cíclica, mas nos últimos dias constante. As vezes acho que estou meio louca. Sempre me julguei muito forte psicologicamente, e até continuo sendo, mas não esperava ser inundada por tamanha ansiedade da maneira como tenho sido. Isso cria ainda mais o sentimento de nostalgia, saudosismo à nossa terra, e até nos faz questionar nossos rumos e as maiores certezas. Tenho certeza que muita gente que me conhece não está acreditando em ler isso aqui, as vezes nem eu acredito. É de fato um mar de sentimentos e confusões que atordoa a nossa plenitude.

Entretanto, é muito interessante ver os fenômenos sociais a que tudo isso leva. E ao contrário do egoísmo geral que vi no começo, senti (tive) e esperei, estou vendo as pessoas se mobilizarem pelo bem comum. Aqui na Itália realmente tem havido engajamento, pelo menos aqui em Milão, onde tudo cresceu. As pessoas tem multiplicado a mensagem de não levar o virus para locais distantes, de não ignorar se você não for grupo de risco, e não ser irresponsável de sobrecarregar o sistema de saúde com outros problemas... (resgate em montanha, por exemplo). O "Andrà tutto bene'' ressoa e aparece nas bandeiras expostas nos prédios. O "Io resto a casa", e o "Stai a casa" foram bem aderidos. Um tanto de nacionalismo quando cantam os hinos da Itália e Lombardia ao meio dia de domingo nos seus terraços, junto às bandeiras expostas. Os discursos tem sido bonitos, o perdão da humanidade do Papa essa sexta-feira "Urbi et Orbi" foi fortíssimo e lindíssimo. Chegam a falar que estamos em guerra, mas acho esse seja um exagero, afinal ainda temos acesso a todo o necessário para viver bem.

Concluindo, ao mesmo tempo que é deprimente tem sido uma experiência única estar vivendo isso justo aqui no epicentro ocidental. Estar sentindo na pele o que esta nação esta sentindo. Como nos primeiros 5 meses eu já consegui fazer uma importante gama de amigos italianos, tenho acompanhado o sentimento de medo, mas também de orgulho e resistência dessa sociedade. Alguns estão mais tranquilos que outros, em especial os que vivem com suas famílias e podem trabalhar a distância.  Para os que estão semi sozinhos como eu, talvez a ansiedade seja maior ainda. A motivação para trabalhar ou para fazer tudo que você sempre quis fazer acaba que não flui tanto como deveria. Porém confesso que fico feliz com o apoio de todo mundo que se manifesta, com o movimento para se comunicar por vídeo e se ajudar psicologicamente,  até coloquei a conversa em dia com amigos que já não me comunicava fazia tempo. Fazemos o máximo para nos manter fortes e unidos, ainda que a distância.
E acho que esse é o recado final nessa situação, estejamos fortes e unidos, ainda que à distancia, em todas as partes do mundo. E obviamente, acreditem na ciência. Quando não estiverem acreditando muito, entrem no site na Science e outras revistas científicas (https://www.sciencemag.org/news/2020/03/how-diseases-rise-and-fall-seasons-and-what-it-could-mean-coronavirus).  Mas saibam que a cura que todos estão esperando sai exatamente das bolsas de pesquisa que o governo está sempre querendo cortar, e que muitos acham que não serve para nada. Suporte seu amigo que faz iniciação científica, mestrado, doutorado, pós-doc e depois fica sem emprego porque não tem concurso, todo trabalho é valioso e o mundo da investigação é ingrato. Poucos entendem a exaustão a que ele nos leva.

E mesmo eu odiando sensos comuns, vou mandar o mais novo por aqui: FIQUE EM CASA! Proteja os outros e você mesmo...

Nota: apesar do texto estrar mostrando o lado deprimente que cada vez se agrava mais, também tem o lado da resiliência, da introspecção e do autodescobrimento. O sangue esquenta mas também esfria, e amadurecemos com tudo isso. Vai passar e estaremos aqui esperando novos nasceres do sol na praça da Via Carlo Marx. Andrà tutto bene, Ciao.

Comments

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  2. Relato pungente em primeira mão de quem viveu no epicentro do que pode ser um dos maiores acontecimentos deste século.
    Força e coragem.

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  3. Muita força pra você nesse momento! Torço pra que você e seus amigos estejam sempre bem, mesmo estando no olho do furacão

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  4. Olá Veleda!
    A experiência que não nos derrota nos fortalece!
    Seu relato é tocante e dá conta da realidade de muito que se vê por aqui também, mesmo no Brasileiro, povo festeiro, a melancolia vem crescendo. Se faz gozação, meme, mas, no fundo muita gente surtando.
    Sei que deve estar sendo uma barra e tanto e te desejo força neste momento. Certamente a resiliência das escaladas ajudarão a manter a sanidade e superar.
    E como você mesmo disse: andrà tutto bene!
    Abraço!

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  5. Já já vc volta a conquistar os picos da Europa e Patagonia! Força Veleda!

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  6. Minha linda e eterna guerreira, força e fé que tudo vai passar, vc vai conseguir fazer as suas atividades, o importante é manter o foco, ficar firme e manter a sanidade sempre. Beijos sempre alerta, Jorgina.

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